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Incêndio no Flamengo e proteção do atleta adolescente

Tragédia no Centro de Treinamento do Flamengo Ninho do Urubu

No dia oito de fevereiro deste ano, por volta das 5h00, ocorreu um incêndio em decorrência de um curto-circuito em um ar-condicionado no Centro de Treinamento do Flamengo, conhecido como Ninho do Urubu. O incêndio atingiu o alojamento da categoria de base do time de futebol, que abrigava atletas entre 14 e 17 anos, sendo que 10 adolescentes morreram, 3 sofreram ferimentos, sendo que um deles se encontra em estado grave e 13 conseguiram escapar ilesos.

Ressalta-se que foi noticiado também que o Flamengo não tinha licenças e alvarás da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e do Corpo de Bombeiros para construir os alojamentos no Centro de Treinamento. Nesse sentido, foram aplicadas 31 multas pela Prefeitura e o alvará de funcionamento não havia sido emitido, pois o Certificado de Aprovação do Corpo de Bombeiros não foi apresentado pelo clube. Em 20/10/2017, a Prefeitura do Rio emitiu ainda um edital de interdição que não foi respeitado.

Proteção do trabalho do atleta profissional adolescente

Essa tragédia com os atletas de base do Flamengo suscita diversas discussões quanto à proteção do trabalho do atleta adolescente e quanto à fiscalização das condições de habitação a que estão submetidos os jovens. É importante ressaltar que, de acordo com o art. 7º, XXXIII, da CF/88 é proibido qualquer trabalho a menores de 14 anos. Além disso, para o adolescente com idade entre 14 e 16 anos, somente é permitido o trabalho na condição de aprendiz.

A disciplina jurídica da relação de trabalho do atleta está prevista na Lei nº 9.615/1998, também conhecida como Lei Pelé. De acordo com o art. 28, “caput”, da Lei Pelé, é permitida a celebração de contrato especial de trabalho desportivo entre entidade de prática desportiva formadora do atleta e o atleta com mais de 16 anos de idade, cujo prazo não pode ser superior a 5 anos.

Além disso, é igualmente possível a celebração de contrato de aprendizagem com atleta não profissional em formação, desde que tenha idade superior a 14 anos e inferior a 20 anos, hipótese em que terá direito ao recebimento de auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes:

Art. 29, § 4º, da Lei Pelé: O atleta não profissional em formação, maior de quatorze e menor de vinte anos de idade, poderá receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada mediante contrato formal, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes.

Em resumo, é permitida a contratação como aprendiz sem vínculo de emprego para atletas em formação somente a partir dos 14 anos de idade. De acordo com o art. 29, § 6º, III, da Lei Pelé, o contrato de aprendizagem deve especificar os direitos e deveres das partes contratantes, inclusive quanto à garantia de seguro de vida e de acidentes pessoais para cobrir as atividades do atleta contratado.

É importante mencionar que a entidade desportiva tem o dever de zelar pela segurança e integridade física e mental dos atletas adolescentes que estão sob sua vigilância e autoridade. Nesse caso, se o clube permitir que algum dano ocorra aos atletas poderá responder pelo ocorrido e terá a obrigação de reparar qualquer prejuízo ou dano decorrente do ato.

Meio ambiente de trabalho: alojamentos dos atletas adolescentes

Especificamente no tocante às obrigações do clube quanto à adequação dos alojamentos que abrigam os atletas adolescentes, o art. 29, § 2º, “d”, da Lei Pelé estabelece que, para que a entidade de prática desportiva possa ser considerada como formadora de atleta, é necessário, dentre outras exigências, que mantenha alojamento e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança e salubridade:

Art. 29, § 2º, “d”, da Lei Pelé: É considerada formadora de atleta a entidade de prática desportiva que: manter alojamento e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança e salubridade.

Vale ressaltar que a CBF tem o dever de certificar que a entidade cumpre os requisitos para ser considerada como formadora de atleta (art. 29, § 3º, da Lei Pelé) e, portanto, caberia a essa entidade verificar se os alojamentos e instalações estavam adequados para abrigar os atletas profissionais.

De acordo com o art. 4º da Resolução da Presidência nº 1/2012 da CBF, as entidades regionais de administração do futebol filiadas à CBF (Federações) têm os poderes para atestar que o clube preenche os requisitos legais para ser considerado formador de atleta, após acurada análise documental e avaliação em “in loco”.

Ademais, o Anexo II dessa Resolução, que prevê os procedimentos, critérios e diretrizes para certificação de clube formador, estabelece no item V, alínea “p”, a necessidade de o clube manter alojamento com área física proporcional ao número de residentes, dotado de ventilação e iluminação natural, em boas condições de habitabilidade, higiene e salubridade, com mobiliário individual, assim como e da mesma forma, banheiros e área de lazer. Note-se, portanto, que as normas de verificação de alojamentos são vagas e não determinam de forma expressa que o órgão da CBF exija a apresentação dos alvarás do Corpo de Bombeiros, da Prefeitura Municipal ou do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Vale destacar que nem a legislação nem a CBF preveem como condição para aprovação da entidade desportiva como formadora de atleta a previsão de alvará de funcionamento do alojamento emitido pela Prefeitura Municipal, a certificação pelo Corpo de Bombeiros de que o alojamento atende às normas de prevenção de incêndios ou a autorização de funcionamento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA (art. 90, § 3º, do ECA).

Em que pese não haja previsão expressa da necessidade de alvarás na Lei Pelé, as normas de prevenção e combate a incêndios e as de funcionamento emitidas pelo Corpo de Bombeiros, pela Prefeitura Municipal e pelo CMDCA devem ser sempre atendidas, pois são indispensáveis para se assegurar a adequada proteção ao meio ambiente de trabalho. Ressalta-se, também, que o atendimento apenas das exigências de um ou alguns dos órgãos não exclui a necessidade da entidade desportiva de obter as demais licenças e alvarás nos demais órgãos, inclusive em respeito ao princípio da proteção integral da criança e do adolescente.

Acidente de trabalho e responsabilidade civil

A tragédia no Centro de Treinamento do Flamengo deve ser considerada acidente de trabalho, pois decorreu da relação de trabalho existente entre os atletas e a entidade desportiva Flamengo responsável por sua formação. Nesse caso, os trabalhadores e suas famílias poderão exigir a reparação dos danos morais e materiais sofridos em razão da tragédia.

Nesse caso, a indenização por danos extrapatrimoniais foi regulamentada pela Reforma Trabalhista nos art. 223-A da 223-G da CLT e segue disposições específicas. Por sua vez, a indenização por danos materiais é regida pelas normas do Código Civil e não pode ser tarifada. A competência para apreciar a ação de indenização pelos danos materiais e morais sofridos é da Justiça do Trabalho (art. 114, IV, CF/88 e Súmula nº 392 do TST);

A Reforma Trabalhista elaborou um sistema de tarifação do dano extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho, com a imposição de limites aos valores de indenização de acordo com a gravidade da ofensa sofrida:

a) Ofensa de natureza leve: Indenização limitada a 3 vezes o último salário contratual;

b) Ofensa de natureza média: Indenização limitada a 5 vezes o último salário contratual;

c) Ofensa de natureza grave: Indenização limitada a 20 vezes o último salário contratual;

d) Ofensa de natureza gravíssima: Indenização limitada a 50 vezes o último salário contratual;

Entendemos que o art. 223-G, § 1º da CLT, que prevê a tarifação do dano extrapatrimonial decorrente da relação de trabalho é inconstitucional, não devendo ser aplicado pelos juízes e tribunais trabalhistas. Caso se entende pela constitucionalidade do dispositivo, entendemos que a tarifação do dano extrapatrimonial não deve ser aplicada no caso de morte do empregado, pois o art. 223-C da CLT não traz expressamente a aplicação dos dispositivos da Reforma Trabalhista na hipótese de morte das vítimas.

Papel do Ministério Público do Trabalho

Por fim, é importante destacar que, diante do ocorrido no Centro de Treinamento do Flamengo, o MPT criou uma força-tarefa para apurar as causas e as consequências jurídicas do incêndio. Nesse sentido, serão estudadas as medidas adequadas para se assegurar às vítimas e suas famílias a indenização pelos danos sofridos.

O clube poderá ser condenado a pagar indenização por danos morais coletivos. O Ministério Público do Trabalho, ao ingressar com a ação civil pública, requer o pagamento de uma reparação à coletividade, em razão do sentimento negativo (raiva, angústia, vergonha) que as pessoas da sociedade sentem ao presenciar a tragédia que atingiu os jovens atletas.

Além disso, será cobrada a readequação das instalações dos clubes para prevenir novos incêndios, seja no Flamengo, seja em outros clubes que não atendem às exigências legais. Nesse caso, o Ministério Público do Trabalho atuará para prevenir novas violações aos direitos dos atletas profissionais, o que corresponde à tutela inibitória das infrações cometidas. Essa tutela trata-se de um provimento via TAC – Termo de Ajustamento de Conduta, firmado espontaneamente no MPT, ou ainda, através de processo judicial, evitando o ajuizamento de diversas ações individuais futuras pela mesma causa.


Fonte: JOTA.

https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/incendio-no-flamengo-e-protecao-do-atleta-adolescente-19022019

25 fev. 2019