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A liberdade econômica e a responsabilidade trabalhista dos sócios

Reflexos da Lei 13.874/19 sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho.

A desconsideração da personalidade é instituto jurídico pelo qual é possível responsabilizar os sócios pelas obrigações da sociedade, superando a autonomia legal entre o patrimônio de ambos. Consiste em importante instrumento para garantir eficácia aos direitos postulados em juízo, notadamente em relação àqueles direitos que são objeto de provimentos jurisdicionais que impõem obrigação de pagar quantia certa.

A recém editada Lei nº 13.784/2019 (Lei da Liberdade Econômica), fruto da conversão da Medida Provisória nº 881/2019, promoveu consideráveis alterações nos dispositivos do Código Civil que regem o instituto. Nesse cenário, importante analisar se essas alterações legislativas repercutem sobre a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho e em que medida se verificam esses reflexos.

A leitura dos art. 49-A e 50 do Código Civil, com redação da Lei 13.874/19, demonstra que a Lei introduziu previsão expressa da autonomia patrimonial entre a sociedade e os sócios, frisou que essa autonomia é instrumento da livre iniciativa e do desenvolvimento econômico e estabeleceu critérios mais rígidos para a desconsideração da personalidade jurídica, mantendo a sua excepcionalidade para os casos de abuso da personalidade.

Ou seja, no que diz respeito às relações de direito civil e comercial, as quais são objeto precípuo das disposições do Código Civil, foi mantida a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica que já vigorava antes da alteração legislativa em foco, apenas estabelecendo de maneira mais detalhada os critérios para apuração do abuso da personalidade jurídica e os limites da responsabilidade dos sócios.

Em uma primeira análise, o art. 1º, § 1º, da Lei nº 13.874/19 poderia conduzir à conclusão no sentido de que foram alterados os requisitos para a desconsideração nos processos trabalhistas ao estabelecer que “O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação […]”.

Contudo, tal dispositivo legal deve ser analisado a partir da interpretação sistemática das normas da Lei nº 13.874/19 e dos fundamentos legais e constitucionais que já fundamentavam a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho, definindo-se a partir daí se permanece aplicável na seara trabalhista a teoria menor, ou se passou a vigorar a apenas a teoria maior.

De plano, constata-se que o dispositivo, ao enumerar os ramos do direito sobre os quais incidem as disposições da Lei, ressalva expressamente que tal incidência limita-se às “relações jurídicas que se encontram em seu âmbito de aplicação”. Ou seja, o próprio dispositivo deixa margem para que o intérprete defina quais as disposições da Lei que incidem sobre cada tipo de relação jurídica em cada ramo do direito.

Tal disposição, apesar de óbvia, é importante para definir o âmbito de aplicação de cada uma das normas da Lei de Liberdade Econômica, uma vez que ela promoveu alterações legislativas em diplomas legais relacionados a diversos ramos do direito, tais como o Código Civil, a Lei de Sociedades Anônimas, a Lei de Registro Público de Empresas Mercantis e a própria Consolidação das Leis do Trabalho.

Não seria razoável supor que todas as normas da Lei 13.874/19 incidem sobre todos os ramos do direito enumerados no art. 1º, § 1º, sendo mais plausível que cada norma incida apenas sobre as relações jurídicas submetidas à área jurídica correspondente ao seu conteúdo, de modo que as normas de direito civil e empresarial aplicam-se sobre as relações respectivas, as normas de direito do trabalho sobre as relações pertinentes etc.

Interpretação contrária conduziria à conclusão de que a Lei 13.874/19 cria verdadeiro caos na interpretação do direito em todas as áreas mencionadas no citado dispositivo, uma vez que faria incidir sobre determinado ramo do direito normas absolutamente incompatíveis com as disposições legais e com os princípios constitucionais que já incidiam sobre ele.

Diante disso, a primeira conclusão a que se chega é de que, às relações de trabalho aplicam-se as disposições da Lei 13.874/19 que alteram especificamente as normas trabalhistas inseridas na CLT. As demais disposições podem ser aplicáveis no âmbito trabalhista, mas passam pelo crivo da análise da aplicabilidade subsidiária, pautada pelos critérios do art. 8º da CLT e pelos princípios constitucionais incidentes.

Com efeito, ao prever que aplicação do direito comum no âmbito do direito do trabalho é subsidiária, o art. 8º impõe como primeiro requisito para tal aplicação que não existam regras próprias do direito do trabalho regendo a matérias respectiva. A prioridade é para aplicação das regras próprias previstas na CLT e, somente se ausentes essas, fica autorizada a aplicação subsidiária das regras de direito comum.

Tal critério já seria o suficiente para excluir a necessidade de transportar para o direito do trabalho as normas que regem a desconsideração da personalidade jurídica em outros ramos, uma vez que atualmente o art. 10-A da CLT, analisado em conjunto com a interpretação que já se conferia aos arts. 10 e 448 do mesmo diploma, autorizam a responsabilização dos sócios sempre quando insuficiente o patrimônio da empresa.

Os arts. 10 e 448 da CLT já autorizavam a desconsideração porque vinculam o contrato de trabalho e as obrigações dele decorrentes à empresa, enquanto atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, não prejudicando os contratos de trabalho e os direitos trabalhistas, as estruturas jurídicas formalizadas para o exercício da atividade, entre as quais a constituição de pessoa jurídica.

Não bastasse isso, a partir da vigência da Lei 13.467/17 (Reforma Trabalhista), o art. 10-A da CLT introduziu nas normas trabalhistas previsão expressa quanto à desconsideração da personalidade jurídica, passando a prever a possibilidade de responsabilização dos sócios atuais e retirantes após esgotada a execução contra a sociedade, não exigindo para tanto a demonstração de abuso da personalidade jurídica.

Ainda que se entendesse que as normas inscritas nos arts. 10, 10-A e 448 da CLT não são suficientes para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho, o que prevê o art. 8º é a aplicação subsidiária do direito comum, ou seja, de normas de outras ramos do direito para além do direito do trabalho, o que não se restringe às normas de direito civil e empresarial previstas no Código Civil.

Nessa esteira, as relações consumeristas são aquelas que mais se aproximam das relações de trabalho, uma vez que em regra ambas são marcadas pela hipossuficiência de um dos contratantes em relação ao outro. Por conseguinte, a norma do art. 28, § 5º, do CDC é a mais adequada para reger subsidiariamente a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho.

Diversamente, as relações de direito civil e empresarial são fundadas na paridade presumida entre os contratantes, o que as torna incompatíveis com a hipossuficiência do trabalhador nas relações de trabalho. Tal circunstância afasta a incidência obrigatória dos requisitos do art. 50 do CC, com alterações da Lei 13.874/19, como única forma de desconsiderar a personalidade jurídica no direito do trabalho.

Por fim, não bastassem todos os fundamentos expostos acima a partir da interpretação da Lei nº 13.874/19 em seus próprios termos e de forma sistemática com as normas trabalhistas e consumeristas, a vedação à aplicabilidade obrigatória, no direito do trabalho, dos requisitos introduzidos no Código Civil decorre da interpretação da legislação infraconstitucional à luz da Constituição Federal.

Com efeito, o núcleo axiológico do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CF, coloca os direitos inerentes à pessoa humana, entre os quais os direitos do trabalhador, em posição de centralidade e superioridade na ordem constitucional, subordinando todos os demais valores constitucionais à eficácia desses direitos, inclusive a ordem econômica e a livre iniciativa, que são os fundamentos da proteção à personalidade jurídica.

No mesmo sentido, o art. 170 da CF expressamente subordina a ordem econômica e o exercício da livre iniciativa à proteção da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa humana ao prever expressamente que a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, finalidade que não se concretiza sem garantia de eficácia aos direitos do trabalhador.

Nessa ordem de idéias, interpretar a legislação infraconstitucional no sentido de que a Lei 13.874/19 tornou excepcional a desconsideração no direito do trabalho, passando a autorizá-la apenas em caso de abuso da personalidade jurídica, significaria subordinar a eficácia dos direitos trabalhistas à proteção irrestrita da livre iniciativa, em flagrante afronta ao sistema constitucional fundado no princípio da dignidade da pessoa humana.

De maneira diversa, a melhor interpretação da lei à luz da Constituição aponta no sentido de que a desconsideração continua sendo possível no âmbito trabalhista sempre quando a proteção à personalidade jurídica for empecilho à concretização do direito do trabalho, teoria menor hoje expressamente consagrada no art. 10-A da CLT, além de autorizada pela incidência subsidiária do art. 28, § 5º, do CDC.

(*) Inacio Andre de Oliveira é Juiz do Trabalho no TRT da 21ª Região.

 


Fonte: JOTA

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05 nov. 2019